Nada a temer, de Julian Barnes
Maio 31, 2024
A consciência da morte estará ligada ao facto de eu ser escritor? Pode ser. Mas, se é asssim, não quero saber nem investigar. Lembro-me da caso de um comediante que, após anos de psicoterapia, compreeendeu finalmente porque é que precisava de ser cómico; e quando compreedeu, parou. Por isso eu não quero arriscar. Mas consigo imaginar uma daquelas opções do estilo "preferimos o quê". "Mr. Barnes, estudámos o seu caso e concluimos que o seu medo da morte está intimamente ligado aos seus hábitos literários que não passam, como para muitos da sua profissão, duma reacção banal à sua condição mortal. Inventa histórias para que o seu nome e uma incálculavel percentagem da sua individualidade continue após a morte física, e essa esperança traz-lhe algum consolo. E mesmo que intelectualmente tenha percebido que pode ser perfeitamente ser esquecido antes de morrer, ou logo a seguir, e que todos os escritores acabarão por ser esquecidos, assim como toda a raça humana, ainda assim parece-lhe que vale a pena. Não podemos ter a certeza se escrever é para si uma reacção visceral ao medo racional ou uma reacção racional ao medo visceral. Mas tem aqui uma coisa para pensar. Aperfeiçoamos uma nova operação ao cérbero, que elimina o medo da morte. É um procedimento singular que não necessita de anestesia geral - pode, aliás, seguir o resultado no monitor. Não perca de vista o ponto luminoso cor de laranja e veja-o esbater-se gradualmente. Mas é claro, descobrirá que a operação lhe tira a vontade de escrever; muitos dos seus colegas, porém, optaram por este tratamento e acharam-no benéfico. No geral, a sociedade também não se queixou por haver menos escritores.
excerto de Nada a temer, de Julian Barnes (Quetzal)