Sabemos que a literatura exerceu um papel fundamental em processos de criação de identidade nacional como os da Alemanha e da Itália no século XIX, prestigiando a língua que haveria de se tornar o padrão unificador. Neste sentido, serviu como uma ferramenta activa. É fácil demonstrar que, atualmente, perdeu essa posição hegemónica, superada em influência social por outros meios de divulgação generalizada, mas que o seu prestígio não declinou por completo no âmbito dos bens, e que este estatuto ainda lhe permite cumprir, em certos contextos, uma função instrumental. Um livro recente de Jaume Subirana, «Construir con palabras. Escritores, literatura e identidad en Cataluña (1859-2019)», demonstra como, no caso catalão, a literatura continua a ser uma ferramenta activa.
Um aspeto fundamental da reflexão de Even-Zohar acerca da constituição de reportórios de bens representativos, por um lado, e de modelos e opções para a vida, por outro, é que a adopção de um reportório partilhado é o que confere coesão e diferenciação a uma entidade coletiva. Encontramos aqui a explicação teórica do conceito de coesão social tantas vezes invocado, mas também vemos como a própria comunidade, e não apenas o sentimento de pertença, se constrói em torno do reportório. O reportório permite criar e manter a identidade coletiva: pode ser inventado ou importado, mas é a adesão a um reportório que cria laços na comunidade.
Afecta todas as categorias da experiência: a língua, a alimentação, a indumentária, os rituais religiosos, os sistemas de parentesco, a distribuição do horário quotidiano, a gestão das emoções, o comportamento sexual, a atitude perante o trabalho, mas também a ligação a um património de bens preciosos, um cânone de escritos, de obras plásticas, de efemérides ou monumentos, que, portanto, se convertem, por sua vez, numa ferramenta ativa de distinção em relação a outros grupos.
É da coesão que depende a disposição dos indivíduos para se solidarizarem com o grupo e colocarem-se ao seu serviço: seja para ir à guerra, ajudar em desastres ou contribuir para o bem comum. Esta coesão é necessária para a sobrevivência das grandes entidades, mas, além disso, faz falta um esforço, um trabalho cultural para incrementar e melhorar as opções disponíveis. De acordo com Even-Zohar, a riqueza de uma sociedade, em termos culturais, não se mede pelo seu património em bens mas pelo volume da sua «caixa de ferramentas», ou seja, pela disponibilidade de opções. Dispomos, assim, de parâmetros distintos dos meramente económicos para avaliar o estado da sociedade: pelo nível de organização, posição alcançada, entreajuda dos seus membros, capacidade para agir, autoconfiança e acesso a oportunidades de empreendedorismo. É nisto que consiste o capital cultural coletivo. Deste modo, propõe Even-Zohar, a energia de uma sociedade e a sua capacidade para responder a novos desafios e crises estão relacionadas com a atividade investida em planeamento e em alargar o leque de opções.