O grande acontecimento da sua vida fora a estrada. Viera para a sua construção. Tinham-lhe dito: “Tu, que és surdo, devias ir trabalhar na construção da estrada de Ram”. Fora contratado logo nos primeiros dias. O trabalho consistia em desbravar, terraplanar, calcetar e alisar com pilões manuais, o trabalho da estrada. Teria sido um trabalho como qualquer outro, se não tivesse sido efectuado, noventa por cento, por forçados e vigiado pelas milícias indígenas que, normalmente, estavam encarregadas da vigilância dos presos da colónia. Esses forçados, esses grandes criminosos, “descobertos” pelos brancos a modos de cogumelos, eram condenados a pena perpétua. Por isso, faziam-nos trabalhar dezasseis horas por dia, acorrentados uns aos outros, em grupos de quatro, em filas cerradas. Cada fila era vigiada por um miliciano fardado com o uniforme da chamada “milícia indígena para indígenas”, outorgado pelos brancos. Ao lado dos forçados havia os contratados, como o capataz. Se a princípio ainda se fazia uma certa distinção entre forçados e contratados, tal distinção acabou por se atenuar insensivelmente, salvo que os forçados não podiam ser despedidos e os contratados podiam sê-lo. Que os forçados eram alimentados e os contratados não. E que, finalmente, os forçados tinham a vantagem de não terem mulher, ao passo que os contratados tinham as suas, que os seguiam, instaladas em acampamentos volantes, atrás dos terrenos em construção, sempre grávidas e sempre esfomeadas. Os milicianos desejavam ter contratados para poderem ter mulheres à mão, mesmo quando trabalhavam durante meses na floresta, a muitos quilómetros de distância das primeiras aldeias. Ademais, as mulheres, tal como os homens e as crianças, morriam de paludismo num ritmo suficientemente rápido, para permitir aos milicianos (os quais tinham rações de quinino, sem dúvida a fim de preservar a existência da sua autoridade, que de dia para dia se tornava mais firme e mais imaginativa) poderem variar com frequência.
Deste modo, fora em grande parte por causa da mulher que o capataz, se bem que muito surdo, aguentara aquilo. E também porque, desde os primeiros dias do seu contrato, movido por uma certa manha ainda intacta, compreendera que o seu interesse residia em fundir-se o mais possível com os forçados e, insensivelmente, fazer esquecer aos milicianos a sua condição aleatória de contratado. Ao fim de alguns meses, aqueles tinham-se habituado a tal ponto a ele, que já o acorrentavam distraidamente com os outros forçados, batiam-lhe como batiam aos forçados e nunca teriam pensado em despedi-lo, tal como se fazia com os autênticos grandes criminosos. Durante esse tempo, a mulher do capataz, como todas as mulheres dos contratados, paria incessantemente, e sempre e apenas dos próprios milicianos, pois que dezasseis horas de calcetagem debaixo de cacete e do sol retiravam, tanto aos contratados, como aos forçados, toda e qualquer faculdade de iniciativa, mesmo a mais natural. Apenas um dos seus filhos sobrevivera à fome e ao paludismo, uma rapariga, que o capataz conservava em sua companhia. Quantas vezes, no espaço de seis anos, a sua mulher dera à luz, no meio da floresta, por entre o trovejar dos malhos e dos machados, os berros dos milicianos e o estalar do seu chicote? - ela já não o sabia muito bem. O que sabia, é que nunca deixara de estar grávida dos milicianos e que era o marido que se levantava a meio da noite, a fim de cavar as pequenas tumbas para os seus filhos mortos.