Enquanto Veneza se afunda, de Ana Cristina Leonardo
Setembro 27, 2024
MENTES ABERTAS, OLARILAS
5 de Novembro de 2011
Em 1996, Richard Dawkins, biólogo britânico famoso pelo seu combate a favor do ateísmo, desabafou durante a palestra Science, Delusion and the Appetite for Wonder que proferia a convite do «Richard Dimbleby Lecture»: «By all means let's be open-minded, but not so open-minded that our brains drop out». A exclamação relacionava-se directamente com o tema da conferência (grosso modo: contra o charlatanismo anti-científico, marchar, marchar: «Let's not go back to a dark age of superstition and unreason, a world in which every time you lose your keys you suspect poltergeists, demons or alien abduction»), mas alargou, entretanto, o seu âmbito, adoptada como divisa por todos os que insistem em distinguir O Tratado Sobre a Tolerância de Voltaire da frase de autor anónimo: «Tu tens a tua opinião, eu tenho a minha e acabou-se a conversa!». Dito isto, e embora correndo o risco, é verdade, dos «miolos me saltarem», voto pela tolerância.
No livro citado de Voltaire, escreveu este referindo-se à violência com base religiosa: «O direito de intolerância é, pois, absurdo e bárbaro: é o direito dos tigres, e é bem horrível: porque os tigres matam para comer e nós andamos a exterminar-nos por causa de parágrafos». Aparentemente, estaremos mais tolerantes e até a Arábia Saudita acaba de reconhecer o direito de voto às mulheres (desde, claro, que os respectivos machos da família assim o entendam...). Sublinho porém o aparentemente porque, desconfio, muitas vezes será apenas a pressão social e não a convicção pessoal que nos leva a acatar certos valores. Raros serão aqueles que, de facto, comungam da verdadeira abertura de espírito da mulher que, aquando do julgamento de Oscar Wilde, disse que não se importava com o que faziam, desde que não o fizessem na rua e não assustassem os cavalos», (Brendan Behan in Nova Iorque, edição Tinta-da-China).
A minha desconfiança acerca de uma real tolerância moral (que não seja apenas fruto das circunstâncias), confirmou-se no outro dia quando saí para comprar pão. A padaria da minha rua fica paredes meias com uma série de after hours. Abre agora ao fim-de-semana e serve uma multidão de noctívagos que, de óculos escuros e andar vesgo, ali vai aviar carcaças por volta do meio-dia. No último domingo, enquanto pagava, comentei: «Está com pouco movimentol Será da crise?». A simpática padeira segredou-me, cúmplice: «Não! É que dantes eram pretos. Agora são gays. Está muito mais calmo, mas não é tão bom para o negócio...».
excerto de Enquanto Veneza se afunda, de Ana Cristina Leonardo (Hierro Lopes Editores)