Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Leituras Improváveis

um registo digital

Leituras Improváveis

um registo digital

A morte da verdade, de Michiko Kakutani

Novembro 29, 2024

kakutani.jpg

Desde a década de 1960 que o mundo tem assistido a uma perda crescente de fé nas instituições e nas narrativas oficiais. Parte deste cepticismo foi um corretivo necessário - uma resposta racional às calamidades das guerras do Vietname e do Iraque, ao escândalo Watergate e à crise financeira de 2008, bem como uma reação a preconceitos culturais que há muito haviam infectado tudo, desde ensino da História na escolaridade básica até às injustiças do sistema judicial. Mas a libertadora democratização da informação possibilitada pela Internet não só impulsionou uma inovação e empreendedorismo vertiginosos como também levou a uma avalancha de desinformação e relativismo, como é demonstrado pela actual epidemia de noticias falsas.
 
Um fator fulcral no desmoronamento das narrativas oficiais no mundo académico foi a constelação de ideias agregadas sob a ampla denominação de pós-modernismo, o qual chegou às universidades norte-americanas na segunda metade do século xx por intermédio de teóricos franceses como Michel Foucault e Derrida (cujas ideias, por sua vez, eram devedoras dos filósofos alemães Martin Heidegger e Friedrich Nietzsche). Na literatura, no cinema, na arquitetura, a música e na pintura, os conceitos pós-modernistas (ruptura com as tradições da narrativa e demolição das fronteiras entre géneros literários e entre cultura popular e arte erudita) iriam revelar-se emancipadores e, nalguns casos, transformadores, resultando numa ampla gama de obras inovadoras de artistas como o escritor Thomas Pynchon, o músico David Bowie, o arquiteto Frank Gehry e cineastas como os irmãos Coen, Quentin Tarantino, David Lynch ou Paul Thomas Anderson. No entanto, quando as teorias pós-modernistas foram aplicadas às ciências sociais e à História, originaram toda uma série de implicações filosóficas, tanto intencionais como não intencionais, que acabariam por fazer ricochete na nossa cultura.
 
Existem muitas correntes diferentes de pós-modernismo e muitas interpretações diversas mas, em termos gerais, a argumentação pós-modernista nega a existência de uma realidade objetiva que seja independente da percepção humana, defendendo que o conhecimento é filtrado através dos prismas de classe, raça, género e outras variáveis. Ao rejeitar a possibilidade de uma realidade objetiva e ao substituir as noções de perspetiva e de posicionamento pela ideia de verdade, o pós-modernismo consagrou o princípio da subjetividade. A linguagem é encarada como sendo pouco fiável e instável (parte do fosso intransponível entre aquilo que é dito e aquilo que se pretende dizer), e mesmo a noção de pessoas a agirem como indivíduos plenamente racionais e autónomos é minimizada, pois cada um de nós é moldado, consciente ou inconscientemente, por uma época e uma cultura particulares.
 
Foi o fim do consenso. O fim da visão da História como uma narrativa linear. O fim das grandes metanarrativas universais ou transcendentes. O Iluminismo, por exemplo, é rejeitado por muitos pós-modernistas da esquerda como uma leitura hegemónica ou eurocêntrica da História, destinada a promover noções colonialistas ou capitalistas de razão e progresso. A narrativa cristã de redenção também é rejeitada, assim como a via marxista ramo a uma utopia comunista. Para alguns pós-modernistas, segundo refere o autor e académico britânico Christopher Butler, mesmo os argumentos dos cientistas podem ser "encarados como pouco mais do que quase narrativas que rivalizam com todas as outras para serem aceites. Não têm uma correlação única ou fiável com o mundo, nenhuma correspondência com a realidade. Não passam de mais uma forma de ficção".

excerto de A morte da verdade, de Michiko Kakutani (Editorial Presença)

 

Balde do lixo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D