Mark Twain revisto e "purificado"
Janeiro 10, 2025
Ernest Hemingway costumava elogiar Mark Twain (1835-1910) alegando que este romancista, humorista e repórter ensinara os compatriotas a escrever. William Faulkner chamou-lhe o «pai da literatura norte-americana».Mas o autor de obras que deram projecção universal ao seu estado de origem, o Missouri, perdeu a aura de prestígio granjeada durante várias gerações. Agora, acusam-no de usar vocabulário racista nos seus livros, que reflectem um mundo anterior à Guerra da Secessão nos EUA. E querem proibi-los, por linguagem indecente. Ou, em alternativa, reescrevê-los, expurgando-os de vocabulário considerado ofensivo.A censura mais descarada, sem disfarce, ocorreu em Janeiro de 2011: o académico Alan Gribben - professor da Universidade de Montgomery, no Alabama, e especializado na obra de Twain - anunciou a publicação iminente de edições «purificadas» dos clássicos Tom Sawyer (1876) e As Aventuras de Huckleberry Finn (1884). Só neste último, o termo nigger (equivalente semântico a "preto"), utilizado 219 vezes no romance, deu lugar a slave (escravo). Como se fossem sinónimos. A palavra «índios» foi expurgada, entre outras.Justificação para esta profilaxia literária? Tornar o livro «mais adequado às salas de aula», em resposta a reiterados apelos de professores do ensino secundário. E também para melhor exprimir as ideias de Mark Twain no século XXI. Daí esta iniciativa, com a chancela da editora NewSouth Books.Que justificou a decisão por motivos de ordem prática: «Diminui a possiblidade de os livros serem vetados nas listas escolares.»Imitando a manha dos políticos, Gribben fez um rasgado elogio ao romancista antes de justificar este atentado à integridade da sua prosa: «Podemos aplaudir a capacidade de Twain no registo da fala de uma determinada região numa época histórica específica, mas os abusivos insultos raciais causam repugnância aos leitores dos nossos dias.»As críticas não tardaram, «Aqueles que censuram conhecem mal literatura americana. Até onde chegaremos? Passaremos também a eliminar letras de musicais como Show Boat? O hip hop, tal como o conhecemos chegará ao fim. Qualquer canção ficará sujeita aquilo que os patrulheiros de palavras decidirem, reagiu o poeta e romancista Ishmael Reed no Wall Street Journal.Em registo mais irónico pronunciou-se Alexandra Petri, colunista do Washington Post: «Essa palavra [nigger] é horrorosa, mas crucial para o romance. Removê-la seria como mudar de 1984 para 2084 o título do romance de Orwell por não reflectir como era agradável a vida durante a administração Reagan.»Outros autores foram lembrando que Huckleberry Finn é um libelo contra o racismo. Saído da pena de um homem que conhecia bem esta brutal realidade, pois cresceu rodeado de escravos: o tio era proprietário de uma pequena plantação.Tudo isto aconteceu quando ainda se assinalava o centenário da morte de Samuel Langhorne Clemens, nome de baptismo do escritor, também célebre pelos seus aforismos e trocadilhos sarcásticos. Eis um deles: «A notícia da minha morte é manifestamente exagerada.»Infelizmente, a notícia da mutilação das suas obras não peca por exagero. É uma lamentável verdade.
excerto de Tudo é tabu, de Pedro Correia (Guerra & Paz)