Novas cartas portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa
Setembro 20, 2024
Relatório Médico-Psiquiátrico sobre a estado mental de Mariana A.
O Conselho Médico-Psiquiátrico do hospital de (...) foi incumbido de examinar o estado mental de Mariana A., que deu entrada na tarde de 16 de Agosto do ano de (...), neste hospital onde ficou internada.
Mariana A., de 25 anos de idade, casada, nasceu em Beja e vive em Lisboa há cerca de 3 anos. Sabe-se que o pai se suicidiou e a mãe, senhora muito religiosa e austera, tem hoje 50 anos. Deste casamento nasceram três filhos: duas raparigas e um rapaz, vivendo a rapariga mais velha e ainda solteira com a mãe. A doente, até há três anos, mais precisamente até 20 de Maio de (..), data do seu casamento com António C., hoje em serviço de soberania no Ultramar, vivera também na casa materna. Segundo suas próprias informações, dava-se ela muito mal com a progenitora, preferindo esta claramente os outros dois filhos, em especial a filha mais velha, com quem se entende muito bem desde sempre.
Estes dados tal como os que se seguem são importantes, na medida em que podem vir a esclarecer o estado mental da doente, ou as causas que a levaram ao acto que praticou, acrescentando-se desde já, nunca Mariana A. ter dado, segundo a família e atestados médicos, sintomas de alienação, ou tendência para aberrações sexuais. Tendo desde criança uma cuidada e rígida educação católica, fez seus estudos em colégios de freiras, cumprindo sempre com a rígida moral lá estabelecida. No entanto, a meio da tarde do dia 16 de Abril do corrente ano, Mariana A. deu entrada de urgência neste hospital, acopulada com um cão. A doente que se encontrava em estado de histeria, era acompanhada pelos sogros que prestaram as seguintes declarações:
«Estávamos a repousar depois do almoço, quando ouvimos gritos e choros vindos do quarto da nossa nora. Quando conseguimos abrir a porta, não entendemos logo o que se passava, imaginando primeiro que Mariana estivesse a ser atacada pelo animal e como ela era tão sossegadinha, tão ajuizada, sempre fechada em casa escrever ao marido! Nós até lhe dizíamos que devia sair connosco para apanhar um pouco de ar... Claro que nunca a deixariamos sair sozinha ou mesmo com alguma amiga, aliás ela não chegou a fazer amigas em Lisboa, o nosso filho era muito metido consigo, gostava só de se dar com pessoas que conhecesse bem, em tudo que dizia respeito à mulher, então, era bastante esquisito, mas ela até parecia gostar disso. Muito ensimesmada desde que o nosso António foi para África, não dormia de noite, nem se alimentava o suficiente, estávamos até para a levar ao médico.»
Mariana A., durante os primeiros dias recusou-se a fazer quaisquer declarações, chorando, gritando quando não estava sob o efeito de hipnóticos. Em seguida caiu num mutismo que parecia não ceder aos tratamentos a que era sujeita. Hoje já presta declarações, recusando-se no entanto a falar do que a levou a cometer o acto que a fez ser internada, não querendo igualmente referir-se ao marido, nem ao seu casamento. Caso se insista, parece deixar de ouvir, os olhos fitos num ponto fixo, assim podendo ficar horas. Comunicando-nos as enfermeiras que Mariana A. monologava bastantes vezes alto quando se julgava sozinha no quarto, recorreu-se a gravações. Transcrevemos adiante uma das que nos pareceu de maior interesse:
«Tu nunca percebeste nunca. A minha mãe dizia é pecado a carne é luxúria e mesmo contigo o era. Foste sempre uma prisão alguma vez pensaste em me ouvir? E agora longe estes anos todos. Anos e anos e eu que fazia? Que fazia desses dias de todo esse tempo em que a única luz seriam as tuas cartas onde tudo me explicavas em pormenor te gabavas de coragem feitos de armas risco e das lutas que para ti são já divertimentos um jogo ou como se em caçadas se tornassem elas. Daí a fotografia que me enviaste onde apareces sorrindo e os teus pais mandaram encaixilhar e está na sala em cima do piano. É luxúria dizia minha mãe é pecado a carne e mesmo contigo eu sentia que o era quando gozava e só eu sei como me tentava retrair. E depois todos estes anos a pesarem-me no ventre todos estes pensamentos estes desejos estas ideias a tua mãe a vigiar-me o teu pai a ler o que eu te escrevia e o que tu me mandavas dizer. E tu como uma prisão sempre como uma prisão e eu a criar-te horror a criar-te todo este asco todo este enorme medo.»
Resumo:
1.- Mariana A. não é alienada.
2.- Não apresenta qualquer indício de tara sexual.
3.- O acto que aqui a trouxe pode ser atribuído apenas a um grave desequilíbrio de ordem nervosa, cujas causas devem ser aprofundadas a fim de se poder tentar curar a doente.
Hospital de (...), 30 de Dezembro de (...).
excerto de Novas cartas portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa (Dom Quioxote)