Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Leituras Improváveis

um registo digital

Leituras Improváveis

um registo digital

O descontentamento da democracia, de Michael Sandel

Dezembro 04, 2024

michael-sandel-369ddfasdff0435303.png

Em 2020, Joe Biden tornou-se o primeiro candidato democrata nomeado para presidente em trinta e seis anos sem um diploma de uma universidade da Ivy League. O facto de um candidato democrata à presidência, vindo de uma universidade estatal, ter sido uma tal novidade mostra como o preconceito credencialista se tinha generalizado.
 
Na década de 2010, o preconceito credencialista encontrou expressão em vastas disparidades na despesa com a educação e na representação política. O país desinveste lamentavelmente nas formas de aprendizagem de que a maioria dos norte-americanos depende para se preparar para o mundo do trabalho - escolas estatais, escolas comunitárias de dois anos e formação profissional e técnica. Isabel Sawhill, economista da Brookings Institution, calculou que, em 2014, o governo federal gastou 162 mil milhões de dólares por ano a ajudar as pessoas a frequentar a universidade, contra apenas cerca de 1,1 mil milhões em formação profissional e técnica.
 
Esta diferença gritante não restringe apenas as oportunidades de quem não pode pagar ou não aspira a um grau de formação de quatro anos, também reflete as prioridades meritocráticas de quem governa. Embora a maioria dos norte-americanos não tenha uma licenciatura, são raros os eleitos para o Congresso norte-americano nessa situação. Noventa e cinco por cento dos membros da Câmara e todos os senadores têm formação superior. Mais de metade dos senadores e mais de um terço dos membros da Câmara são advogados e muitos outros possuem graus académicos avançados. Mais de metade dos membros do Congresso são milionários. Não tem sido sempre assim. Os licenciados e doutores sempre estiveram desproporcionadamente representados no Congresso, mas ainda em meados dos anos 80, 15% dos membros da Câmara e 12% dos senadores não possuíam curso universitário.
 
Uma consequência da maré credencialista é a classe trabalhadora estar hoje praticamente ausente do governo. Nos Estados Unidos, cerca de metade da força de trabalho está empregada no trabalho manual e na indústria de serviços. Mas menos de 2% dos membros do Congresso tinham tais empregos antes da sua eleição. Nas legislaturas estaduais, apenas 3% provêm da classe trabalhadora.
 
Os eleitores brancos da classe trabalhadora que apoiaram Trump não foram os únicos norte-americanos mal servidos pelo enfoque meritocrático no ensino superior como solução para os seus problemas. Os trabalhadores das comunidades de cor também foram negligenciados por um projeto político que dá pouco apoio e estima social àqueles que aspiram a empregos que não requerem um diploma universitário. O representante James Clyburn, da Carolina do Sul, o afro-americano de maior destaque no Congresso, fez uma crítica devastadora à viragem meritocrática do seu partido. Clyburn, cujo apoio a Biden nas primárias de 2020 da Carolina do Sul salvou a candidatura de Biden, pondo-o no caminho para a nomeação, viu Biden como uma alternativa a esse credencialíssimo indulgente que afastara os trabalhadores do Partido Democrata.
 
«O nosso problema», disse Clyburn, «é que demasiados candidatos passam o tempo a tentar que as pessoas saibam como são inteligentes, em vez de tentarem ligar-se às pessoas.» Clyburn achava que os democratas tinham dado demasiada ênfase à educação universitária. «O que significa quando um candidato diz: "Precisa de ser capaz de enviar os seus filhos para a faculdade?" Quantas vezes já ouviu isso? Detesto ouvir isso Não preciso de ouvir isso. Porque temos pessoas que querem ser eletricistas, que querem ser canalizadores, que querem ser barbeiros. Embora não o tenha dito dessa forma, Clyburn estava a manifestar-se contra o projeto político meritocrático que, involuntariamente, afastara os eleitores da classe trabalhadora e aberto o caminho para Trump.
 
Em 2020, a «divisão do diploma» estava a fazer-se sentir para lá da classe trabalhadora branca. Embora Biden tenha mantido a maioria tradicional dos democratas entre os eleitores negros e latinos, Trump ganhou entre os eleitores de cor sem grau académico. Pela primeira vez, o candidato democrata obteve melhores resultados entre os eleitores de cor com diplomas universitários do que entre aqueles com escolaridade básica.
 
Ver as formas meritocráticas de pensar o sucesso como o parceiro moral para a globalização impulsionada pelas finanças ajuda-nos a compreender a reação política contra as elites diplomadas. Durante quatro décadas, a fé do mercado e a fé meritocrática, consideradas em conjunto, formaram o projeto definidor da política norte-americana dominante. O capitalismo neoliberal tornou algumas pessoas ricas e outras pobres, mas a meritocracia criou a divisão entre vencedores e vencidos. E foi esta divisão, e não apenas a desigualdade de rendimentos, que deu origem à humilhação que Trump e outros populistas autoritários foram capazes de explorar.
 
excerto de O descontentamento da democracia, de Michael Sandel (Presença)

Balde do lixo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D