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Leituras Improváveis

- um registo digital -

Leituras Improváveis

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26.05.25

A política é a grande generalizadora – disse-me o Leo – e a literatura a grande particularizadora, e entre ambas não se estabelece apenas uma relação inversa, mas também uma relação antagónica. Para a política a literatura é decadente, balofa, irrelevante, maçadora, opinosa, soturna, algo que não faz sentido e realmente não deveria existir. Porquê? Porque o impulso particularizante é a literatura. Como pode o senhor ser artista e renunciar a este cambiante? Como artista o cambiante é o seu mister. A sua tarefa não é simplificar. Mesmo que opte por escrever com a máxima simplicidade, à Hemingway, a tarefa continua a ser eliminar a cambiante, elucidar a complicação, implicar a contradição. Não fazer desaparecer a contradição, não negar a contradição, mas ver onde, dentro da contradição reside o ser humano atormentado. Permitir o caos, deixá-lo instalar-se. De outra forma está a fazer propaganda, se não a um partido político, a um movimento político, pelo menos à própria vida, à vida tal como ela poderia preferir ser publicitada. Durante os primeiros cinco ou seis anos da Revolução Russa os revolucionários gritavam “Amor livre, o amor será livre!”, mas quando chegaram ao poder não puderam permiti-lo. Sim, o que é o amor livre? O caos. E eles não queriam o caos. Não era para isso que tinham feito aquela gloriosa revolução. Queriam algo de cautelosamente disciplinado, organizado, contido e, se possível, cientificamente previsível. O amor livre conturba a organização. Não por ser ostensivamente a favor ou contra, ou mesmo subtilmente a favor ou contra. Conturba a organização, porque não é geral. A natureza intrínseca do particular é ser particular, e a natureza intrínseca da particularidade é não ser conforme. Generalização do sofrimento: temos o comunismo. Particularização do sofrimento: temos a literatura. Nessa polaridade reside o antagonismo. Manter vivo o particular num mundo simplificador e generalizador, é aí que começa a batalha. Não é preciso escrever para legitimar o comunismo, tal como não é preciso escrever para legitimar o capitalismo. O senhor está fora de ambos. Se é escritor, está tão desligado de um como de outro. Naturalmente vê as diferenças, claro que vê que esta merda é um bocadinho melhor do que a outra merda, ou que a outra merda é um bocadinho melhor do que esta merda. Porventura muito melhor. Mas vê a merda. Não é funcionário do Governo. Não é militante. Não é um crente fervoroso. É alguém que lida com o mundo e com o que acontece no mundo de uma maneira muito diferente. O militante traz uma fé, uma grande crença que mudará o mundo, e o artista traz um produto que não tem lugar nesse mundo. Que é inútil. O artista, o escritor sério, traz ao mundo algo que não se encontrava lá nem mesmo no princípio. Quando Deus fez esta treta em sete dias, as aves, os rios, os seres humanos, não teve dez minutos para a literatura. “Faça-se a literatura. Alguns gostarão dela, outros viverão obcecados por ela, quererão fazê-la…”. Não, não. Ele não disse isso. Se nessa altura tivesse perguntado a Deus: “Façam-se os canalizadores?” “Sim, porque eles vão ter casas a precisar de canalizadores.” “Façam-se os médicos?” “Sim. Porque eles vão ficar doentes e precisar de médicos para lhes receitarem comprimidos.” “A literatura? O que é isso? Para que serve? Onde é que isso encaixa? Por favor, eu estou a criar um universo, não uma universidade. Nada de literatura.”

excerto de Casei com um comunista, de Philip Roth (Dom Quixote)

 

10.01.25

Ernest Hemingway costumava elogiar Mark Twain (1835-1910) alegando que este romancista, humorista e repórter ensinara os compatriotas a escrever. William Faulkner chamou-lhe o «pai da literatura norte-americana».
 
Mas o autor de obras que deram projecção universal ao seu estado de origem, o Missouri, perdeu a aura de prestígio granjeada durante várias gerações. Agora, acusam-no de usar vocabulário racista nos seus livros, que reflectem um mundo anterior à Guerra da Secessão nos EUA. E querem proibi-los, por linguagem indecente. Ou, em alternativa, reescrevê-los, expurgando-os de vocabulário considerado ofensivo.
 
A censura mais descarada, sem disfarce, ocorreu em Janeiro de 2011: o académico Alan Gribben - professor da Universidade de Montgomery, no Alabama, e especializado na obra de Twain - anunciou a publicação iminente de edições «purificadas» dos clássicos Tom Sawyer (1876) e As Aventuras de Huckleberry Finn (1884). Só neste último, o termo nigger (equivalente semântico a "preto"), utilizado 219 vezes no romance, deu lugar a slave (escravo). Como se fossem sinónimos. A palavra «índios» foi expurgada, entre outras.
 
Justificação para esta profilaxia literária? Tornar o livro «mais adequado às salas de aula», em resposta a reiterados apelos de professores do ensino secundário. E também para melhor exprimir as ideias de Mark Twain no século XXI. Daí esta iniciativa, com a chancela da editora NewSouth Books.
 
Que justificou a decisão por motivos de ordem prática: «Diminui a possiblidade de os livros serem vetados nas listas escolares.»
 
Imitando a manha dos políticos, Gribben fez um rasgado elogio ao romancista antes de justificar este atentado à integridade da sua prosa: «Podemos aplaudir a capacidade de Twain no registo da fala de uma determinada região numa época histórica específica, mas os abusivos insultos raciais causam repugnância aos leitores dos nossos dias.»
 
As críticas não tardaram, «Aqueles que censuram conhecem mal literatura americana. Até onde chegaremos? Passaremos também a eliminar letras de musicais como Show Boat? O hip hop, tal como o conhecemos chegará ao fim. Qualquer canção ficará sujeita aquilo que os patrulheiros de palavras decidirem, reagiu o poeta e romancista Ishmael Reed no Wall Street Journal.
 
Em registo mais irónico pronunciou-se Alexandra Petri, colunista do Washington Post: «Essa palavra [nigger] é horrorosa, mas crucial para o romance. Removê-la seria como mudar de 1984 para 2084 o título do romance de Orwell por não reflectir como era agradável a vida durante a administração Reagan.»
 
Outros autores foram lembrando que Huckleberry Finn é um libelo contra o racismo. Saído da pena de um homem que conhecia bem esta brutal realidade, pois cresceu rodeado de escravos: o tio era proprietário de uma pequena plantação.
 
Tudo isto aconteceu quando ainda se assinalava o centenário da morte de Samuel Langhorne Clemens, nome de baptismo do escritor, também célebre pelos seus aforismos e trocadilhos sarcásticos. Eis um deles: «A notícia da minha morte é manifestamente exagerada.»
 
Infelizmente, a notícia da mutilação das suas obras não peca por exagero. É uma lamentável verdade.

excerto de Tudo é tabu, de Pedro Correia (Guerra & Paz)

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