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Leituras Improváveis

um registo digital

Leituras Improváveis

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Os cínicos não servem para este ofício, de Ryszard Kapuściński

Dezembro 06, 2024

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Pergunta do público: Há dramas da história contemporânea que foram pouco ou quase nada cobertos pelos jornais. Refiro-me, por exemplo, às perseguições de algumas minorias religiosas e étnicas no Irão. Por que é que determinados factos nunca entraram na agenda da imprensa internacional?
 
Ryszard Kapuściński: Porque a imprensa internacional é manipulada. E são várias as razões de tal manipulação. Há, por exemplo, razões de ordem ideológica: de entre as actividades humanas, os meios de comunicação são os mais manipulados, na medida em que são instrumentos para influenciar a opinião pública e podem ser usados de várias formas consoante quem os gere. Existem diversas técnicas de manipulação. Nos jornais, podemos fazer uma manipulação através do que decidimos pôr na primeira página, do título que escolhemos e do espaço que damos a um acontecimento. Há centenas de formas de manipular notícias na imprensa. E outras centenas na rádio e na televisão. E sem dizer mentiras. O problema da rádio e da televisão é que não é necessário mentir: podem limitar-se a não reflectir a verdade. O sistema é muito simples: omitir o assunto. A maior parte dos espectadores da televisão recebem de modo muito passivo o que lhes é dado. Os patrões das cadeias televisivas decidem por eles o que devem pensar. Determinam a lista de coisas em que se deve pensar e o que se deve pensar sobre elas. Não podemos estar à espera de que o telespectador médio realize estudos independentes sobre a situação do mundo, seria impossível, inclusive para os especialistas. O homem médio, que trabalha, regressa a casa cansado e quer simplesmente estar um pouco com a família, só recebe o que chega até ele naqueles cinco minutos de telejornal. Os assuntos principais que dão vida às «notícias do dia» decidem o que pensamos do mundo e o modo como o pensamos.
Trata-se de uma arma fundamental na construção da opinião pública. Se não falarmos de um acontecimento, este simplesmente não existe. Com efeito, para a maior parte das pessoas, «as notícias do dia» são a única forma de conhecer alguma coisa do mundo. Testemunhei pessoalmente essa situação em Moscovo, em 1991, aquando da tentativa de derrubar o primeiro governo de Boris leltsin e de restaurar o comunismo. O acontecimento principal, que determinou tudo, ocorreu em Leningrado, actual São Petersburgo. No entanto, as equipas televisivas estavam todas em Moscovo. O problema das televisões e dos meios de comunicação em geral é que são tão grandes, influentes e importantes que começaram a criar um mundo só deles. Um mundo que tem muito pouco a ver com a realidade. De resto, esses meios de comunicação não estão interessados em reflectir a realidade do mundo, mas sim em competir entre si. Uma estação televisiva, ou um jornal, não pode permitir-se não ter a notícia que o seu concorrente directo tem. De modo que acabam por observar os seus concorrentes em vez de observar a vida real.
Actualmente, os meios de comunicação andam em bandos, quais ovelhas em rebanhos: não podem deslocar-se separadamente. Por isso, lemos e escutamos os mesmos relatos, as mesmas notícias sobre os factos por eles reportados. Vejam a Guerra do Golfo: 200 equipas televisivas concentram-se na mesma zona. Ao mesmo tempo, muitas outras coisas importantes, até mesmo cruciais sucedem-se noutras partes do mundo. Não importa, ninguém falará sobre isso: estão todos no Golfo. Porque o objectivo de todas as grandes cadeias televisivas não é dar uma imagem do mundo, mas sim não serem ultrapassadas pelas suas concorrentes. Se, de repente, há outro grande acontecimento, todos se deslocam nessa nova direcção e ali ficam de atalaia sem tempo para fazer a cobertura de outros lugares. Este é o modo como o homem médio constrói uma ideia da situação mundial.
Obviamente, há revistas, publicações periódicas e, sobretudo, livros que fornecem uma imagem mais equilibrada e completa, mas são para minorias, para pequenos grupos de especialistas. Para o grande público, a informação é apenas o resultado da competição, da luta entre os diversos meios de comunicação. O que é outra história.
O outro tipo de manipulação é a consciente. Hoje, os meios de comunicação só estão dispostos a falar de um acontecimento quando são capazes de explicar as suas causas e dar todas as respostas necessárias. Por exemplo, a crise no Kosovo já dura há oito anos, mas não se fala nela enquanto não se tomar a decisão de começar a resolver o problema. A notícia não existe se não houver uma resposta preparada para as suas causas.
 
excerto de Os cínicos não servem para este ofício, de Ryszard Kapuściński (Relógio d'Água)

O descontentamento da democracia, de Michael Sandel

Dezembro 04, 2024

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Em 2020, Joe Biden tornou-se o primeiro candidato democrata nomeado para presidente em trinta e seis anos sem um diploma de uma universidade da Ivy League. O facto de um candidato democrata à presidência, vindo de uma universidade estatal, ter sido uma tal novidade mostra como o preconceito credencialista se tinha generalizado.
 
Na década de 2010, o preconceito credencialista encontrou expressão em vastas disparidades na despesa com a educação e na representação política. O país desinveste lamentavelmente nas formas de aprendizagem de que a maioria dos norte-americanos depende para se preparar para o mundo do trabalho - escolas estatais, escolas comunitárias de dois anos e formação profissional e técnica. Isabel Sawhill, economista da Brookings Institution, calculou que, em 2014, o governo federal gastou 162 mil milhões de dólares por ano a ajudar as pessoas a frequentar a universidade, contra apenas cerca de 1,1 mil milhões em formação profissional e técnica.
 
Esta diferença gritante não restringe apenas as oportunidades de quem não pode pagar ou não aspira a um grau de formação de quatro anos, também reflete as prioridades meritocráticas de quem governa. Embora a maioria dos norte-americanos não tenha uma licenciatura, são raros os eleitos para o Congresso norte-americano nessa situação. Noventa e cinco por cento dos membros da Câmara e todos os senadores têm formação superior. Mais de metade dos senadores e mais de um terço dos membros da Câmara são advogados e muitos outros possuem graus académicos avançados. Mais de metade dos membros do Congresso são milionários. Não tem sido sempre assim. Os licenciados e doutores sempre estiveram desproporcionadamente representados no Congresso, mas ainda em meados dos anos 80, 15% dos membros da Câmara e 12% dos senadores não possuíam curso universitário.
 
Uma consequência da maré credencialista é a classe trabalhadora estar hoje praticamente ausente do governo. Nos Estados Unidos, cerca de metade da força de trabalho está empregada no trabalho manual e na indústria de serviços. Mas menos de 2% dos membros do Congresso tinham tais empregos antes da sua eleição. Nas legislaturas estaduais, apenas 3% provêm da classe trabalhadora.
 
Os eleitores brancos da classe trabalhadora que apoiaram Trump não foram os únicos norte-americanos mal servidos pelo enfoque meritocrático no ensino superior como solução para os seus problemas. Os trabalhadores das comunidades de cor também foram negligenciados por um projeto político que dá pouco apoio e estima social àqueles que aspiram a empregos que não requerem um diploma universitário. O representante James Clyburn, da Carolina do Sul, o afro-americano de maior destaque no Congresso, fez uma crítica devastadora à viragem meritocrática do seu partido. Clyburn, cujo apoio a Biden nas primárias de 2020 da Carolina do Sul salvou a candidatura de Biden, pondo-o no caminho para a nomeação, viu Biden como uma alternativa a esse credencialíssimo indulgente que afastara os trabalhadores do Partido Democrata.
 
«O nosso problema», disse Clyburn, «é que demasiados candidatos passam o tempo a tentar que as pessoas saibam como são inteligentes, em vez de tentarem ligar-se às pessoas.» Clyburn achava que os democratas tinham dado demasiada ênfase à educação universitária. «O que significa quando um candidato diz: "Precisa de ser capaz de enviar os seus filhos para a faculdade?" Quantas vezes já ouviu isso? Detesto ouvir isso Não preciso de ouvir isso. Porque temos pessoas que querem ser eletricistas, que querem ser canalizadores, que querem ser barbeiros. Embora não o tenha dito dessa forma, Clyburn estava a manifestar-se contra o projeto político meritocrático que, involuntariamente, afastara os eleitores da classe trabalhadora e aberto o caminho para Trump.
 
Em 2020, a «divisão do diploma» estava a fazer-se sentir para lá da classe trabalhadora branca. Embora Biden tenha mantido a maioria tradicional dos democratas entre os eleitores negros e latinos, Trump ganhou entre os eleitores de cor sem grau académico. Pela primeira vez, o candidato democrata obteve melhores resultados entre os eleitores de cor com diplomas universitários do que entre aqueles com escolaridade básica.
 
Ver as formas meritocráticas de pensar o sucesso como o parceiro moral para a globalização impulsionada pelas finanças ajuda-nos a compreender a reação política contra as elites diplomadas. Durante quatro décadas, a fé do mercado e a fé meritocrática, consideradas em conjunto, formaram o projeto definidor da política norte-americana dominante. O capitalismo neoliberal tornou algumas pessoas ricas e outras pobres, mas a meritocracia criou a divisão entre vencedores e vencidos. E foi esta divisão, e não apenas a desigualdade de rendimentos, que deu origem à humilhação que Trump e outros populistas autoritários foram capazes de explorar.
 
excerto de O descontentamento da democracia, de Michael Sandel (Presença)

A morte da verdade, de Michiko Kakutani

Novembro 29, 2024

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Desde a década de 1960 que o mundo tem assistido a uma perda crescente de fé nas instituições e nas narrativas oficiais. Parte deste cepticismo foi um corretivo necessário - uma resposta racional às calamidades das guerras do Vietname e do Iraque, ao escândalo Watergate e à crise financeira de 2008, bem como uma reação a preconceitos culturais que há muito haviam infectado tudo, desde ensino da História na escolaridade básica até às injustiças do sistema judicial. Mas a libertadora democratização da informação possibilitada pela Internet não só impulsionou uma inovação e empreendedorismo vertiginosos como também levou a uma avalancha de desinformação e relativismo, como é demonstrado pela actual epidemia de noticias falsas.
 
Um fator fulcral no desmoronamento das narrativas oficiais no mundo académico foi a constelação de ideias agregadas sob a ampla denominação de pós-modernismo, o qual chegou às universidades norte-americanas na segunda metade do século xx por intermédio de teóricos franceses como Michel Foucault e Derrida (cujas ideias, por sua vez, eram devedoras dos filósofos alemães Martin Heidegger e Friedrich Nietzsche). Na literatura, no cinema, na arquitetura, a música e na pintura, os conceitos pós-modernistas (ruptura com as tradições da narrativa e demolição das fronteiras entre géneros literários e entre cultura popular e arte erudita) iriam revelar-se emancipadores e, nalguns casos, transformadores, resultando numa ampla gama de obras inovadoras de artistas como o escritor Thomas Pynchon, o músico David Bowie, o arquiteto Frank Gehry e cineastas como os irmãos Coen, Quentin Tarantino, David Lynch ou Paul Thomas Anderson. No entanto, quando as teorias pós-modernistas foram aplicadas às ciências sociais e à História, originaram toda uma série de implicações filosóficas, tanto intencionais como não intencionais, que acabariam por fazer ricochete na nossa cultura.
 
Existem muitas correntes diferentes de pós-modernismo e muitas interpretações diversas mas, em termos gerais, a argumentação pós-modernista nega a existência de uma realidade objetiva que seja independente da percepção humana, defendendo que o conhecimento é filtrado através dos prismas de classe, raça, género e outras variáveis. Ao rejeitar a possibilidade de uma realidade objetiva e ao substituir as noções de perspetiva e de posicionamento pela ideia de verdade, o pós-modernismo consagrou o princípio da subjetividade. A linguagem é encarada como sendo pouco fiável e instável (parte do fosso intransponível entre aquilo que é dito e aquilo que se pretende dizer), e mesmo a noção de pessoas a agirem como indivíduos plenamente racionais e autónomos é minimizada, pois cada um de nós é moldado, consciente ou inconscientemente, por uma época e uma cultura particulares.
 
Foi o fim do consenso. O fim da visão da História como uma narrativa linear. O fim das grandes metanarrativas universais ou transcendentes. O Iluminismo, por exemplo, é rejeitado por muitos pós-modernistas da esquerda como uma leitura hegemónica ou eurocêntrica da História, destinada a promover noções colonialistas ou capitalistas de razão e progresso. A narrativa cristã de redenção também é rejeitada, assim como a via marxista ramo a uma utopia comunista. Para alguns pós-modernistas, segundo refere o autor e académico britânico Christopher Butler, mesmo os argumentos dos cientistas podem ser "encarados como pouco mais do que quase narrativas que rivalizam com todas as outras para serem aceites. Não têm uma correlação única ou fiável com o mundo, nenhuma correspondência com a realidade. Não passam de mais uma forma de ficção".

excerto de A morte da verdade, de Michiko Kakutani (Editorial Presença)

 

Educação ou Barbárie, de Guilherme d'Oliveira Martins

Novembro 08, 2024

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O século XX, ao longo do qual se tem afirmado uma confluência inquietante entre a procura da felicidade e a consumação da barbárie, foi talvez demasiado triunfalista sobre as possibilidades da humanidade. O resultado foi bem evidente. O "excesso de sentido", o primado do fio vermelho da história, deu origem aos episódios sangrentos que deixaram a humanidade exangue, quando os mais optimistas anunciavam não apenas o bem-estar ao virar da esquina, mas também a reconciliação definitiva das sociedades - num "fim da história", em que a "ideia" de Hegel foi sendo interpretada de formas diversas.

E agora? Não se pense que estamos vacinados contra a barbárie pelas guerras e pelas tragédias do século XX. Não estamos. Há novos big brothers, que Orwell talvez não tenha previsto, que espreitam donde menos se espera. Sarajevo constitui um sério alerta. Na Europa há sinais de fragmentação social, bem evidentes na Itália do Norte, mas também nos países de forte imigração, onde os conflitos sociais têm intensificado fenómenos de intolerância.

A esta tendência, que põe em causa a concepção de "contrato social" em vigor no último meio século nas sociedades ocidentais, acrescem os novos problemas da "sociedade da informação" - que obrigam a repensar algumas bases do Estado de direito, como a legalidade e a legitimidade. O culto do efémero junta-se ao risco da tirania instantânea do número através do que podemos designar como caricatura electrónica da política e da sociedade. Esta transforma-se num reality-show - no qual a manipulação e a exploração de sentimentos primários se tornam métodos comummente aceites e praticados. Pluralismo e "relativismo ético" aparecem confundidos, convicção e opinião surgem como sinónimos. E, assim, a sociedade passa a ter dificuldade em assumir a diversidade e o espírito crítico, preferindo um "pensamento débil", de fronteiras ténues e valores difusos. Em vez de se tornar factor de enriquecimento, a diversidade é substituída pela anomia. Deste modo, o risco da "tirania do número"  leva a esquecer que a política e a cidadania exigem princípios, regras, equilíbrio de poderes e influências, freios e contrapesos e tempo - e que a legitimidade obriga a que haja instâncias de mediação, aptas a representar as pessoas, os cidadãos e as comunidades, a regular os conflitos, a garantir a coesão social e a assegurar a salvaguarda do pluralismo, como condição de liberdade e de autonomia. Usando a expressão de Tocqueville, trata-se, afinal, de afirmar "uma sociedade que age por si própria e sobre si própria".

excerto de Educação ou Barbárie, de Guilherme d'Oliveira Martins (Gradiva, 1998)

 

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