O bisavô da telenovela chama-se folhetim
As narrativas longas, com muitas personagens, impossíveis de consumir num só dia, têm milhares de anos. A que mais revela o gosto dos receptores por esse modelo é As Mil e Uma Noites, uma criação colectiva em árabe, compilada a partir do século XI. Sherazade arrisca a vida para terminar com a loucura do sultão, que traído pela mulher, decidira deitar-se todas as noites com uma virgem e mandá-la matar no dia seguinte. Sherazade oferece-se como virgem por uma noite, mas começa a encantar o sultão com uma narrativa que não termina nessa primeira noite: pelo contrário, fica em suspenso. E, a cada jornada, repete-se o mesmo modelo até que, mil noites depois, o sultão decidir casar com Sherazade. A narrativa das "mil e uma noites" termina em felicidade. Sherazade, a narradora, conquistou o seu público - o sultão na estória, os ouvintes ou os leitores da estória - através da narrativa contínua, com suspense no fim de cada episódio. A narrativa, a ficção, salva Sherazade.
Esta obra remete-nos também para a literatura oral: não só Sherazade narra, dentro da ficção, directamente para o sultão como os próprios contadores desta história ficcional o fizeram durante séculos. O mesmo sucedeu com as epopeias gregas, chinesas, com as medievais europeias e tantas outras. Não podemos levar longe demais a filiação da telenovela nestas formas antigas, mas apenas sublinhar o gosto inato do ser humano pela audição ao vivo de narrativas longas, complexas na teia de acções e personagens, e com pontos de suspense. São características de que a telenovela se apropria, mas por outra via, a do folhetim. O folhetim surge na primeira metade do século XIX. É uma criação literária da imprensa diária, quer dizer, da primeira indústria cultural de massas, os jornais. Os capítulos ocupavam todo o rodapé do jornal, podendo ser recortados para guardar. Terminavam com um momento de suspense, para levar à leitura - à compra do jornal - no dia seguinte. Muitos autores escreviam à medida da publicação. Alguns alteravam a narrativa de acordo com as sugestões dos leitores. O folhetim, escrito e publicado em letra de forma, tinha, porém, uma dimensão oral, sendo lido em voz alta por grupos populares nas ruas e tascas, e nas salas por famílias burguesas. O folhetim já apresentava, no século XIX, a dimensão de uma indústria cultural: Alexandre Dumas tinha uma oficina de argumentistas que escreviam os folhetins segundo as suas indicações. Também já existia a transmediação, isto é, a passagem de um conteúdo de um medium ou meio para outro, com a publicação do folhetim em livro depois de terminado no jornal. Quando a rádio se afirmou como meio de massas, o folhetim saltou para as ondas hertzianas, primeiro nos EUA, depois por todo o mundo ocidental. Nos EUA, o folhetim na rádio - ou teatro radiofónico, como se chamou em Portugal - nasceu com o cordão umbilical ligado à indústria de detergentes e produtos de higiene, pelo que ficou conhecido como soap opera, "ópera de sabão". Embora sem qualquer relação com a ópera, o conteúdo tinha uma forte carga melodramática, associada às óperas românticas. Da rádio, o folhetim saltou para a fotonovela, para a telenovela e, ainda, no mesmo modelo episódico, para a banda desenhada. No cinema, no início do século XX, houve igualmente novelas, com um episódio semanal com transmutação para os jornais do mesmo grupo editorial que as produzia. Apesar da frequente associação do folhetim ao teatro, as semelhanças são reduzidas. De semelhante há a intensidade dramática e a insistência em núcleos familiares. A telenovela também teve, e tem ainda, uma similitude adicional, resultante de os cenários em estúdio se parecerem com cenários do palco teatral, com três paredes diante do público ou da audiência. A representação de tipo teatral, muito pesada nas primeiras décadas da telenovela, resultante do tipo de diálogos mas principalmente da origem dos actores, foi depois substituída pelo tipo de representação naturalista e, em qualquer caso, o "ar" teatral dos actores existiu noutras formas do audiovisual, quer no cinema quer noutros géneros televisivos.
Apesar de a telenovela ser descendente do folhetim impresso e do teatro radiofónico, essa filiação perdeu-se com a autonomização crescente do género televisivo: a telenovela é como um bisneto que já nada, ou quase nada, sabe sobre o bisavô folhetim, mesmo que partilhem algumas características estruturais: a serialização e a apresentação diária; a profusão de personagens, com presença obrigatória de um par romântico do princípio ao fim, e sua divisão por núcleos familiares de vários extractos sociais; existência de gancho ou cliffhanger, um momento de suspense interrompido no final de cenas ou dos episódios; evolução improvável ou até irrealista de fios narrativos, mas, em simultâneo, uma grande preocupação com o realismo e a verosimilhança das situações; presença acentuada ou centragem em personagens femininas; ligação forte ao público ou audiência; relação umbilical com a indústria mediática em que se insere.