Um dedo Borrado de Tinta, de Catarina Gomes
Julho 15, 2024
Nas minhas conversas no Casteleiro, haverá quem me fale de coisas que acontecem de forma «instantânica», ou de alguém que se começou a «desbaldar» de escrever a assinatura, que houve muita gente que andou no minério, no «alfrâmio», e que dantes só se dava importância aos «chões», querendo dizer terras, ou que alguém sofreu um ataque «sobral», ou que para ali está um homem assim, «alfabeto», querendo dizer «analfabeto».
No momento em que recordo estas palavras, vêm-me à memórias outras: «ogranizar», «desmagar», «estransformar», «estamparente», «desquecer». Lembro o afecto com que coleccionei os erros dos meus filhos, nos poucos anos em que não sabiam ler, porque tinha noção de que eram preciosidades linguísticas de um tempo do qual eu adivinhava que teria saudades. As palavras erradas, que guardo num ficheiro Word chamado «estransformações», devolvem-me a infância dos meus filhos, a inventividade da oralidade, a plasticidade da linguagem nesta fase primeira das suas vidas. O meu filho mais novo dizia «sustionar» em vez de «estacionar». Dizia, mas já não diz. Quando ainda não se sabe ler, fala-se como se ouve; quando aprenderam a ler, os meus filhos corrigiram as suas palavras erradas. Com adultos que nunca aprenderam a ler é diferente, as palavras deturpadas ficam para sempre, cicatriz de vida.
Decido que, neste livro, ninguém, a partir de Horácio, dará erros no papel. É a forma que encontro de emendar a história. É essa a beleza da escrita: pode proteger de uma maneira que uma câmara de filmar não conseguiria. Corrigindo quem nunca pôde aprender, resguardo-os, ao menos nestas páginas. Aqui, ninguém os apoucará, ninguém lhes dirá que são burros.
excerto de Um dedo Borrado de Tinta, de Catarina Gomes (Edição FFMS)